quinta-feira, 4 de abril de 2013


PROJÉTEIS
Arte instalação fundamentada nos índices de homicídio por arma de fogo ocorridos no ano de 2008 na cidade de Vitória/ES.

Marcelo Mattos Gandini[1]

RESUMO


O artigo é motivado pela exposição de arte ocorrida no ano de 2009 na galeria Homero Massena, na cidade de Vitória/ES. Intitulada “PROJÉTEIS”, tratava-se de uma arte-instalação que fez referência aos números de homicídios ocorridos na capital do Espírito Santo no ano anterior. Esses dados alarmantes sobre a violência urbana nos fazem refletir e levam consequentemente a um questionamento bastante direto: Quem será a próxima vítima?

A intenção do projeto artístico foi trazer à tona a percepção do sujeito,  “ente” transformado em dado estatístico, enquanto o artigo evidencia especificamente o número de homicídios, problematiza a capacidade de percepção do espectador e aponta um entendimento acerca da “sensação de invisibilidade” causada por meio de um canal perceptivo pouco usual (obra de arte contemporânea).

A arte não mais imita a vida, ela é a vida, existir nesse mundo camaleão da era dos paradoxos onde as aparências enganam de tudo ao mesmo tempo: o primitivo, o domesticado e o fora dos eixos exige inteligência, criatividade e competência na sobrevivência do sujeito diante a realidade maquinal.

Palavras-chave: Homicídio. Arte Contemporânea. Invisibilidade. Projéteis.
1. INTRODUÇÃO


 A violência atinge sem distinção de credo, raça ou religião todos os cidadãos, entra nos lares sem consentimento, seja pelos meios de comunicação ou quando faz suas vítimas estarem cada vez mais próximas de todos. A arte instalação projéteis chama para essa reflexão não apenas as pessoas que passam pela galeria, mas também aquelas que diariamente lidam com a violência e que, por ocasião do trabalho, já não são mais tocadas pelo caráter arrasador da violência urbana. Não é possível omitir-se diante dessa realidade, sendo cada vez mais imperativo indignar-se, posicionar-se e reagir.

Ao fazer uma simples leitura dos dados estatísticos fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Espírito Santo (SESP/ES) referentes aos homicídios na cidade de Vitória observamos uma realidade cruel: em 2008 foram mortos por arma de fogo na capital do Espírito Santo duzentas e vinte quatro (224) pessoas. Há um posicionamento pouco eficaz, tanto da sociedade civil quanto do Estado no enfrentamento e controle dos índices de violência urbana que acabam por chegar à inércia perante os problemas que resultam em tamanha guerra em nossas cidades, ceifando vidas, destruindo  sonhos, assassinando a esperança.

Ao lançar-se no mundo criado pela exposição projéteis é possível refletir não apenas sobre o quantitativo, mas também sobre a forma e o porquê tantas pessoas são mortas diariamente nas cidades, além de ser possível ainda pensar sobre a identidade de vítimas e agressores, bem como em ações que podem nos levar à redução desses índices que, por ora, nos tornam  menos humanos.





2  A GÊNESI DA EXPOSIÇÃO “PROJÉTEIS”


Quantos homicídios por arma de fogo ocorreram na cidade de Vitória/ES em 2008? A resposta é aterrorizante: em média, 25 pessoas FORAM MORTAS por mês. Esse dado representa quase uma morte por dia. Também é impressionante como transformamos vidas perdidas em frios números estatísticos. Como um computador  que codifica informações num código binário seguimos construindo índices enquanto outras tantas perguntas deixam de ser feitas, como por exemplo, se é válida a permissão do uso de arma de fogo em nossa sociedade e quais consequências essa permissão tem trazido para a formação social?

De fato não há uma resposta matemática para esta pergunta contudo a ideia da exposição veio de encontro a vontade de construir um gráfico que realmente atraísse a atenção das pessoas com o crescimento do número de mortos vítimas de arma de fogo e da violência de modo geral.

Outros artistas já se enveredaram pelo tema da violência e com muita propriedade, o trabalho P.A.F. (Perfuração por Arma de Fogo), realizado no ano de 2009 contribui para estabeleceram uma conexão lúdica e potente da obra de arte com o expectador, segundo a fotógrafa, documentarista e artista Aude Chevalier-Beaumel:
No interior da França, até a metade do século XX, um fotógrafo era chamado pelas famílias, para registrar a última imagem do falecido. A foto era enviada como um cartão postal para informar o óbito aos parentes.
Desde o meu primeiro contato com o Brasil, fui confrontada com relatos íntimos e noticias das mortes violentas por arma de fogo. Em junho de 2007, morando no Centro do Rio, passando diariamente em frente ao Instituto Médico-Legal, decido abordar as famílias que esperam na calçada a liberação dos corpos de parentes.
Meu trabalho começava naquela calçada em busca de informações e autorizações das famílias para fotografar e registrar os velórios de P.A.F. (Perfuração por Arma de Fogo), em termos legistas. Utilizei o esquecido costume fotográfico para resgatar as histórias de vida e de morte das pessoas que se tornaram números na frieza das estatísticas sobre a violência no Rio de Janeiro.

  A concepção da exposição “PROJÉTEIS” surgiu da observação do poder destrutivo do projétil balístico, uma pequena porção metálica, capaz de ceifar uma vida, de paralisar uma história, de modificar tantas outras. O cerne do trabalho artístico vem do desejo transformador da realidade, em função da compreensão do que nos cerca. Assim, a proposta foi  levar o expectador a uma reflexão sobre a banalização da violência e seus desdobramentos.

No espaço expositivo da galeria Homero Massena foram dispostos doze alvos (de treinamento de tiro) perfurados por 224 disparos de arma de fogo (revólver calibre .38). Cada perfuração fez referência a uma vida humana perdida pelo uso da arma letal na cidade de vitória/es.

Além dos alvos perfurados foram dispostas pequenas caixas transparentes contendo todos os projéteis deformados utilizados nos disparos. Com carvão foi inscrito na parede da galeria um ao lodo do outro o primeiro nome de cada vítima fatal e também as vítimas não identificadas com a inscrição: “não identificado”. Um último projétil, intacto, também foi disposto em uma caixa com uma interrogação (?), como se perguntasse: Quem será a próxima vítima?

Na parte frontal da galeria foi posicionada uma TV direcionada para a porta de entrada do espaço expositivo. O espectador deparava-se com um vídeo dos disparos realizados e o som desses disparos propagavam por todo o espaço expositivo, desencadeando uma construção mental e, na maioria dos frequentadores,  uma sensação de desconforto.
A exposição foi construída como um grande gráfico, onde o expectador é parte integrante  e atua passiva ou ativamente, evidenciando-se uma  percepção sinestésica.

Ao trafegar no ambiente de imersão o expectador é conduzido a estabelecer relações memoriais e a criar imagens mentais estimuladas pelos elementos que estruturaram o trabalho artístico. Não é possível fazer uma dicotomia entre arte/realidade, deve ser discutido o momento vivido e a condição de mero espectador passivo a fim de que não sejamos vítimas da própria inércia.

Ao analisar as mortes divulgadas nos dados estatísticos faz-se uma constatação: a maioria das vítimas são jovens, negros, com baixa escolaridade e moradores de áreas periféricas. Apesar de haver um movimento no sentido da “democratização da violência”, em que todos sem distinção são vítimas da realidade atual retratada num recorte estatístico colhido junto à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SESP), os índices mostram uma realidade perversa, que evidencia a invisibilidade das vítimas da violência.

Estes dados estão à disposição de qualquer cidadão na página virtual da SESP e  trazem à tona uma forma brutal de extermínio de uma parcela da população que é desfavorecida e que não tem acesso a bens fundamentais, cláusula pétrea da Constituição Federal.

Foi comum por uma grande parte dos frequentadores da exposição um certo espanto ao  descobrir que o artista também é Policial Militar, fato pouco comum que gerou curiosidade por parte do público. A experiência vivida em quase vinte anos de corporação consolidam e estruturam um diálogo entre conteúdos de campos de conhecimento diversificados.

Entre os dias 28 de abril e 29 de maio de 2009 a exposição foi visitada  por cerca de 1000 pessoas, entre os quais estavam também alunos e professores de escolas da rede municipal dos municípios de Serra, Vila Velha e Vitória .

A mediação realizada pelos estagiários da galeria junto aos frequentadores forneceu inúmeros relatos para uma análise sob o ponto de vista reflexivo, dentre eles pode-se destacar algumas perguntas feitas pelos visitantes: Quem são essas pessoas? Onde aconteceram essas mortes? Por que tantas pessoas morreram em tão pouco tempo? Quem são essas pessoas não identificadas? O artista também é Policial Militar? O que está sendo feito para diminuir o números de homicídios? Por que o governo não proíbe o comércio de arma de fogo? E a polícia, não faz nada?

Dentre outros relatos e questionamentos, constata-se que a intenção inicial do trabalho atingiu um de seus objetivos que é trazer para uma discussão razões, influências, responsabilidades do estado e da sociedade em relação à quantidade de mortes por arma de fogo.

Um relato em especial chamou a atenção: uma aluna da rede municipal de Serra aproximou-se de um dos nomes que estava inscrito na parede e, ao reconhecer ser este o nome de seu pai - morto em uma ação violenta do tráfico de drogas no município onde mora - em um ato de inconformidade com a realidade imposta, instintivamente apagou com suas mãos o nome do pai morto há pouco mais de oito meses. Sua ação não se tratou de uma atitude passiva. Sua indignação, intolerância e inconformidade com a realidade é um recado a todos que não enxergam o que ocorre diante dos nossos olhos.





3  METODOLOGIA


Este artigo é resultado de uma pesquisa quali-quantitativa realizada com base no estudo de dados estatísticos, concentrando-se no número de homicídios registrados pelo CIODES, bem como nos dados referentes aos homicídios com o uso de arma de fogo ocorridos na cidade de Vitória-ES no ano de 2008.

O estudo está voltado para a análise de mortes por arma de fogo, contudo seu foco recai também sobre a educação estética, com especial destaque para a possível integração entre a realidade apresentada pelos dados estatísticos e o campo das manifestações artísticas.

De acordo com os objetivos, adotamos como instrumentos de coleta e análise de dados estatísticos. Inicialmente realizou-se uma pesquisa documental relativa ao quantitativo de homicídios ocorridos em toda a Região Metropolitana, restringindo-se o objeto de pesquisa posteriormente à área geográfica onde ocorreram os crimes para a cidade de Vitória/ES.

Dando prosseguimento ao levantamento de dados, foram identificadas as vítimas de homicídio por utilização de arma de fogo a partir de dados contidos na estatísticas do ano de 2008.


A observação da realidade é fundamental para que possamos promover mudanças que vão construir um mundo menos violento. Rotinizar nossas ações a ponto de não nos levar a enxergar o que há de humano na sociedade, tal como nos indicou Weber, tem levado a civilização humana ao que Walter Benjamin caracterizou como barbárie.  Mercantilizar, então, essa relação entre o trabalho policial e a arte seria um grande erro uma vez que ambos podem colaborar para o desenvolvimento social a partir de formas diversas (e complementares) de intervenção na realidade.


O desconforto promovido no espectador pela exposição chama a sociedade à reflexão não apenas do fato homicídio, mas também para atenção sobre quem está morrendo e quem está matando.


Neste aspecto ressalta-se o papel da arte que traz a realidade à mostra a partir de uma apresentação que tira do eixo, que recoloca, que faz pensar a partir do desconforto. CHAUDANNE em sua crítica ao trabalho do artista (2009, p. 02) definiu a obra do exposta na galeria Homero Massena como uma grande subsídios para um entendimento que chamou de “caos da violência urbana”, onde CHAUDANNE:


[...]A exposição “Projéteis”, de Marcelo Gandini – em cartaz até esta sexta-feira, me assustou quando entrei na Galeria Homero Massena. Eu estava diante de um campo de batalha limpo (paradoxalmente), quase que clínico; nada da hemoglobina dos quadros das batalhas napoleônicas. Era uma morte branca, hospitalar, muda – quase uma meditação budista – (e me parece que os budistas usam o branco como cor do luto). Era, sim, o silêncio da morte real sem literatura, sem enfeites neocarnavalescos como o Barroco.
E essa limpeza da morte ia mais longe, porque nas paredes da galeria havia umas caixinhas – que eu suponho serem de acrílico – que continham uma bala, às vezes meio esmagada. Porque essa exposição se trata de uma possível morte com arma de fogo – apesar de as balas terem vindo do treinamento dos policiais. Mas, metafisicamente falando, toda bala mata ou fere. É seu destino.
O símbolo está ali, ainda reforçado pelo fato de estar numa caixinha de “cristal” – o que é como uma consagração, uma sagração do crime. Os al- vos usados para o exercício de tiros dos policiais estão ali, furados de balas, para dizer que se trata de uma arte que mata. E os alvos representam o corpo humano. Corpo humano de Marcelo Gandini, que é policial e que carrega no fêmur uma bala (radiografia de capa do convite).
A mostra que revela o caos da violência urbana fica em cartaz na Galeria Homero Massena, na Cidade Alta, em Vitória, até a próxima sexta-feira
TEMA.
É uma espécie de eterno retorno da morte. A frieza branca da exposição é seu forte, e sua morte às vezes é vista como uma bela dama branca, uma espécie de grande Mãe que nos liberta de nossas relatividades afetivas e metafísicas. O branco dessa morte, nessa exposição, é o branco das geleiras nórdicas, uma espécie de deserto congelado e que paradoxalmente tem a beleza do cristal (as caixinhas).
Uma morte cristalizada que se opõe a todo o sangue que ela provoca – hemorragia que é mostrada numa “É uma espécie de eterno retorno da morte. A frieza branca da exposição é seu forte” a montagem visual na entrada da galeria, na qual um revólver atira sobre um emaranhado de cores de dominante vermelho (e há outros trabalhos desse tipo que o artista mostrou só na sua palestra muito consciente).
Pois bem, A Morte Seca, A Morte Branca. Não há balas perdidas, porque toda bala é um crime ambulante. Marcelo Gandini, com essa exposição, não glamorização a violência, não faz dela um esporte dos finais de semana. Não, porque ele é consciente, isso é raro, e sua consciência tem antes de tudo consciência do horror e da injustiça. E se a justiça é armada (com a espada), ela também usa a balança que diz que só a “besta tem que morrer”, não uma criança que sai da escola.
São Jorge mata o dragão, não a princesa.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O gesto da obra de arte não remete a uma violência gratuita – um procedimento tão frequente  na arte dita contemporânea – mas à incapacidade da amnésia. Ato que se quer não só mnemônico, mas também crítico, pois pode ser uma peça de elucidação do tecido social, A instalação é alusiva a um cotidiano ácido, com a qualidade de não recuar nem destilar um rosário de misérias que ninguém está disposto a ouvir.

O trabalho de arte exposto na galeria Homero Massena não pode ser visto simplesmente como um simples Gráfico da Violência, tampouco uma forma cartesiana e literal da violência urbana, mas sim como um ambiente de imersão, onde ao ter contato com a obra de arte seja aberto um canal perceptivo para a realidade que nos cerca, objetivando assim mudança de paradigma conceitual sobre o tratamento dispensado à questão que é contundente.

Mesmo sem resultados diretamente conclusivos e lineares, por se tratar de questões  da subjetividade da percepção humana, o trabalho vislumbra uma sociedade mais solidária e comprometida na busca de soluções consistentes para a diminuição e controle dos índices de homicídio na cidade de Vitória/ES.


7 REFERÊNCIAS



CHAUDANNE, Gilbert. Marcelo Gandini A Morte Branca. Disponível em: http://www.premium.srv.br/midias/pdf/1776-4a283d71dcfa0.pdf. Acesso em 01out.2012.
             Dados estatísticos do ano de 2008 na cidade de Vitória-ES. SESPES Disponívelem:http://www.ijsn.es.gov.br/extrator/extrator.php?spaceDim=Munic%C3%ADpio&Munic%C3%ADpio=20. Acesso em 03out.2012.
             Disponível em: http://www.expopaf.blogspot.com.br/ Acesso em 03out.2012.
             FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo, Hucitec, 1985, 92p.
             FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 15. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
             McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extenção do Homem. Trad. Décio Pignatari, Cultrix, 1979, 407.
              SANTOS Fº, Valdelino Gonçalves dos. Palimpsestos Gráficos. Vitória, PMV, Lei Rubem Braga/CVRD, 1996.48p.







[1] 1° Sargento da PMES. Graduado em Artes Visuais. Pós-graduando em Educação Inclusiva.